Lançado em maio, Mil Placebos não é necessariamente a estreia de Matheus Borges na cena literária do Rio Grande do Sul. Egresso da conhecida oficina de escrita de ficção ministrada por Luiz Antonio de Assis Brasil na PUCRS – um dos alunos da turma de 2015, para ser mais preciso –, Borges tem participado, ao longo dos últimos anos, de diversas revistas e coletâneas de contos, publicadas dentro ou fora do país. Suas contribuições têm aparecido ainda, com menor frequência, na forma de crônicas de marcado acento político, ácido bom humor e ironia de alta voltagem.
Uma das primeiras características de destaque em Mil Placebos diz respeito à sua carga informacional. Pareceu-me, antes de tudo – embora não fundamentalmente –, um romance de compilação de dados, de processamento e síntese (bem como de reinvenção ficcional) de uma série de informações e tensões históricas.
A trama gira em torno de um personagem cujo pseudônimo em redes sociais e fóruns de discussão online é Eyeball Kid. Não sabemos, ao certo, quem ele é. Não sabemos onde ele está, nem onde mora. Sabemos que se apaixona por uma jovem com quem interage de modo remoto, uma interlocutora inconfiável e algo etérea, cuja identidade real ele desconhece, em grande parte. Ela se chama Jennifer Burton. Nas postagens públicas e, depois, nas mensagens privadas que trocam, identifica-se como “Jersey Girl”. Apenas isso. É quase tudo o que se sabe. Num dos primeiros capítulos, entretanto, Jennifer/”Jersey Girl” se suicida. Eyeball Kid decide então investigar por conta própria as razões da morte, seus detalhes e suas causas eventuais. Quer conhecer um pouco mais sobre a garota pela qual havia se apaixonado. Chega a suspeitar de um assassinato. Mil Placebos é o o a o dessa investigação, sua grande rede de consequências, dentro e fora dos mundos virtuais.
Narrado em primeira pessoa, num registro genérico híbrido, oscilando entre o neo-noir, a ficção científica e o ensaio de tons acadêmicos, o livro entrega ao leitor a subjetividade profunda de Eyeball Kid, um narrador em crise, que se constitui e se revela (revela-se, acima de tudo, para si mesmo) na medida em que se deixa tragar por uma sucessão avassaladora de acontecimentos. Muitas vezes são acontecimentos fortuitos, que parecem despropositados, sem nexo; noutras, são acontecimentos viscerais e violentos. Esse é o esquema narrativo no qual o acompanhamos refletir sobre as práticas escolares, a transição da adolescência à vida adulta, a relação com os pais, a música de Peter Gabriel, o primeiro amor e as primeiras decepções amorosas. E assim se sucedem ponderações (por sinal, bastante iluminadoras, tão agudas quanto necessárias) sobre os usos e abusos da internet, capitalismo cognitivo, milícias e crimes digitais, conglomerados farmacêuticos com tentáculos invisíveis e apetite monstruoso, deep web e outros tantos fantasmas hoje associados às novas tecnologias, à expressão de nossa turbulenta contemporaneidade.
Altamente recomendável, o romance de Matheus Borges possui inúmeros méritos. Entre eles, além de filiar-se à estirpe de autores consagrados como Don DeLillo, J. G. Ballard e Thomas Pynchon – sem exageros! –, está o mérito de transcender a fórmula desgastada da autoficção e escapar à ambientação do enredo numa representação realista da cidade (e da cultura) de Porto Alegre. Quando aparece, no momento em que um desfecho se desenha, Porto Alegre é tão só um acidente de percurso. Literalmente.
Mil Placebos, enfim, nos apresenta um universo de incomunicabilidade, embora estejamos soterrados de informação, ardendo de tanta proximidade e tanto contato. Eyeball Kid, o narrador que nos estende a mão, é um sujeito assustado, embora lúcido. Ele tem medo, pode se tornar violento e se deixar arrastar pela desconfiança, pela confusão mental e pela fúria paranoica que enxerga em quase toda parte. Ele pode não ter mais retorno. Ele quase não tem mais cura.