
Com cinco anos de pesquisa e um mergulho profundo, em tons de azul índigo, nas singularidades da produção nacional do jeans, o livro O Jeans do Brasil traz ao mundo a história dessa febre que começou por aqui na década de 1970 e se tornou uma peça obrigatória no guarda-roupa de qualquer pessoa.
A reportagem de Zero Hora acompanhou o lançamento da obra no Rio Grande do Sul, no dia 3 de junho, em Caxias do Sul – um novo lançamento está marcado para 3 de julho, na Unisinos, em Porto Alegre.
O livro é assinado por quatro especialistas: a professora, pesquisadora e consultora de moda Beth Venzon; a consultora de moda e jornalista Jussara Romão; a estilista e atual CEO do Grupo Malwee, Gabriela Cirne Lima; e a estilista, consultora e especialista em jeans Giuliana Castelo Branco.
Antes de seguir pela linha do tempo dessa história, vale destacar os seus significados: denim é o tecido, índigo é o corante, e jeans é a roupa.
Como tudo começou
O jeans surgiu na década de 1870 nos Estados Unidos, décadas depois, conquistou o público por meio dos filmes de faroeste e dos galãs do cinema, como Marlon Brando e James Dean, que eternizaram a combinação de camiseta branca e calça jeans como símbolo de rebeldia e estilo urbano.
Cerca de 100 anos depois, a peça começou a ser produzida em solo nacional, com características únicas do “jeans made in Brazil”, como o elastano, que traz conforto, e a modelagem, que acentua as curvas e a sensualidade do DNA brasileiro.
Além de contar a trajetória do denim no país, as quatro autoras se propam a documentar histórias, rostos e territórios que construíram um dos segmentos mais emblemáticos da moda brasileira.
Confira a entrevista com Beth, Gabriela e Jussara
Qual é a origem do jeans?
Beth: A história do jeans é mundial. Ela começa no século 19 com a construção de um tecido resistente e muito durável, feito para ser usado por mineradores e outros trabalhadores. As primeiras peças foram confeccionadas pela marca Levi’s, de Levi Strauss. Essa matéria-prima servia para o trabalho, pois oferecia proteção, sendo apenas uma peça utilitária, sem entrar como fator de moda.
Ao longo do século 20, trabalhadores do campo começaram a vestir a peça, assim como atores de filmes de caubói e, nos anos 1950, grandes galãs de Hollywood. O jeans deixou de ser uma roupa para o trabalho e ou a ser uma peça urbana, de transformação. Ninguém o usaria como moda até aquele momento. Dessa forma, o jeans se tornou um símbolo de contracultura.
Hoje, todo mundo usa jeans. Antes dele, o que todo mundo usava?
Beth: Até então, usava-se alfaiataria. Mas, por causa de Marlon Brando e James Dean, a calça jeans e a camiseta branca se tornaram um símbolo do século 20. A geração que surgiu nos anos 1950 desejava se vestir e ser completamente diferente dos pais.
Gabriela: O jeans inaugura a era casual na moda, um lifestyle menos formal.
Jussara: É o primeiro rompimento da juventude em relação às suas referências paternas. É uma forma de dizer: “Eu não sou igual a você e não quero ser”. É um processo que, no final dos anos 1960, se transformou no que chamamos de uma juventude mais descolada e livre. Com eles, o jeans aparece já muito desgastado, rasgado, mostrando a absoluta transgressão.
Gabriela: O jeans vai trazendo o espírito do tempo, pois começa a agregar informações àquele item – como rasgos, modelagem e bordados – que, na sua origem, era apenas uma calça reta com bolsos e se torna uma forma de expressão.
Como foi fazer esse livro, de 400 páginas?
Beth: Foi um grande quebra-cabeça. Existem informações sobre o jeans brasileiro, mas estavam espalhadas em recortes e publicações. Nós fizemos essas conexões e achamos os fios condutores para amarrar as informações.
Gabriela: Começamos pensando em um livro que contaria a história de um produto, mas chegamos a um que conta a história das pessoas, das marcas e das famílias que construíram essa trajetória no Brasil. É emocionante ver a sensação de pertencimento dessas pessoas quando elas veem a vida delas tangibilizada em um livro.
Como começa a história do jeans no Brasil?
Beth: A grande transformação vem das tecelagens, em busca de fazer o tecido chamado denim. Por mais que lá fora já existissem marcas de sucesso, o Brasil ainda não tinha sua produção de denim. Aqui há toda uma trajetória de experiências têxteis que começou entre os anos 1940 e 1960, para chegar apenas em 1972 à descoberta de um denim brasileiro, o que ocorreu com a empresa Alpargatas.
Quem foi a Alpargatas no cenário nacional?
Jussara: Uma empresa argentina que entrou no Brasil para vender alpargatas. Com isso, trouxeram a tecelagem, que fabricava o chamado “brim coringa” – um tecido de trabalho mais resistente.
Observando o comportamento em outros países, a marca percebeu que era possível adaptar o brim. Assim, iniciou-se o exercício de testar misturas de fios e tramas, trabalhar nas texturas, amaciar o material. Então, em 1972, eles anunciaram: “Estamos fabricando o denim no Brasil”.
Gabriela: Tendo o tecido, vem a revolução da lavanderia. O jeans bruto de um lado é branco e do outro é azul, que é a trama de fio de algodão branco com fio de algodão tingido de índigo. Mas, para que o tecido tivesse diferentes características, as técnicas de lavanderia começaram a entrar em cena.
Jussara: É também nessa época, por volta dos anos 1980, que o fio lycra entra em cena no denim, para deixá-lo mais flexível. Foi fruto de muita pesquisa, pois não era fácil fazer essa trama.
Gabriela: O elastano entra em cena por dois motivos principais: para trazer a sensualidade do corpo feminino – e temos várias marcas que fizeram isso – e também para trazer conforto.
Beth: E junto com essa mesma tecelagem que faz o primeiro denim, surge a primeira marca brasileira de jeans, que é a US Top, pertencente à Alpargatas.
Jussara: Para vender melhor o próprio tecido, a Alpargatas começou a desenvolver sua roupa, sua coleção de jeans. E começou a ajudar as pessoas a entenderem como produzir isso. A Alpargatas vendia uma metragem limitada de jeans para cada empresa
Beth: Depois da Alpargatas há um boom de outras tecelagens que produzem denim, mais para o final dos anos 1970, como a Santista, a Forum, a Zoomp, a Ellus e outras.
E o jeans no Brasil teve uma boa aceitação do público?
Beth: Sim, porque o grande desejo das pessoas era ter uma calça Levi’s ou Lee, marcas que eram importadas
Do que é feito o jeans?
Gabriela: A base é algodão. Depois vêm as composições de algodão com elastano. E hoje em dia há algodão com poliéster e elastano, e também novas fibras que estão sendo pesquisadas para fazer jeans, como o cânhamo.
Essa paixão pelo derrière, pelas curvas, pelo número ímpar, pela costura lateral aberta (...) pelo cós anatômico e pelas baggies define mais do que a modelagem: significa a minha alma, a minha vida
RENATO KHERLAKIAN
Criador da Zoomp e da Zapping, em trecho do livro “O Jeans do Brasil”
Há um capítulo do livro que fala da relação entre corpo, sensualidade, Brasil e jeans. Qual é essa relação?
Jussara: O jeans brasileiro tem essa identidade. A modelagem é justa, tem muita sensualidade. Tanto é que o Brasil se define por esse jeans com curvas.
Beth: No Brasil, o jeans ganha um atributo de sensualidade, é quase como uma segunda pele.
Jussara: Isso aparece inclusive no jeans masculino, principalmente com o elastano. Você enxerga o bumbum, a forma do corpo, das pernas.
Gabriela: Viajamos pelo Brasil para a pesquisa e percebemos que, no centro-oeste, por exemplo, a produção de calças masculinas nesta região é, na maior parte, justa e colada. É onde há a maioria dos festivais de música sertaneja.
Beth: Se formos olhar para a Gang, vemos que ela foi uma das marcas do Rio de Janeiro que fez um jeans como uma segunda pele mesmo, muito colado. Isso chegou a virar um funk.
Calça da Gang toda a mulher qué, uns R$ 200 pra deixa a bunda em pé
CALÇA DA GANG
Canção do Furacão 2000, citada no livro "O Jeans do Brasil"
O jeans brasileiro é mundialmente importante?
Gabriela: O Brasil é referência no seu estilo de jeans, assim como o Japão e a Holanda também são, mas não é um exportador de jeans como é, por exemplo, a moda praia.
Qual leitura vocês fazem do nosso mercado de jeans agora?
Gabriela: Acompanhamos o auge das marcas mais criativas, como Zoomp, Forum, Soft Machine, Triton, M. Officer e outras nas décadas de 1980 e 1990, mas foi um movimento que perdeu força. Hoje, percebemos o jeans muito democratizado, uma roupa básica do guarda-roupa brasileiro. As marcas mais inovadoras que estão começando hoje têm uma pegada de sustentabilidade.
Uma das críticas que se faz ao jeans tem a ver com poluição, principalmente para os tingimentos...
Gabriela: Sim, quando a lavanderia começou, havia muita base química, nociva ao meio ambiente. Mas começaram a se desenvolver processos tecnológicos. Atualmente, há inúmeras formas de lavar e de trazer o efeito para o jeans poluindo menos, às vezes sem usar água, apenas o ozônio. Temos visto jeans com menos efeitos, com essa pegada de sustentabilidade.
Qual é o futuro do denim brasileiro?
Jussara: Queríamos falar do futuro, mas sem nos apropriar da certeza. Trouxemos o setor para uma conversa e, fazendo perguntas baseadas numa metodologia, tivemos insights que classificamos “possível”, “plausível” e “provável” para tendências de produção, consumo e reutilização do jeans.
Gabriela: Hoje, o pós-consumo é uma questão importante da moda, porque é preciso dar uma segunda vida para a roupa e fazer um processo circular, seja através de upcycling, de desfibrar para construir novos tecidos, etc.
Jussara: Precisamos começar a oferecer para o brasileiro as nossas próprias histórias, e este livro mostra a trajetória desde a produção do algodão, ando pelas tecelagens e confecções, e chegando até a loja. É preciso que as pessoas entendam como se constrói esse processo extenso, complexo e trabalhoso, que envolve muita mão de obra.