Quando eu era pequena, Deus era um homem elegante e, de certa forma, simpático. Tinha um estilo jovial, meio alegre e parecia conversar comigo pelos detalhes. A vida é feita de detalhes. Só depois de adulta é que descobri isso. Somos a soma dos detalhes. Ele usava chapéu e tinha um bigode que cobria o sorriso. De noite, antes de dormir e com medo do escuro, ele me dizia que eu podia, mas demorou para eu acreditar. Era um homem alto, sem ser atleta e eu imaginava que ele andava por sobre as nuvens quando chovia por aqui. Eu era pequena e nos momentos mais difíceis, pensava que morava dentro do bolso de seu casaco. Era ali que me abrigava do mundo. Assim, eu deixava de ser eu mesma para ser outra e ali ninguém me alcançava. Quando queria, espiava por sobre o bolso e registrava o que via num caderno.
Quando entrei na escola já sabia ler, meu pai tinha me alfabetizado. Eu dizia para ele, quando crescer quero ser escritora. Meu pai também tinha bigode e usava chapéu. E ele comprava livros. Na minha infância não cabia muita coisa, o dinheiro era curto, mas todo mês tinha um livro. Dias atrás minha mãe me entregou meu primeiro caderno, de quando tinha sete anos. Na primeira página uma poesia. De repente me encontrei com a criança que fui. A letra insegura, escrita com força e rasura, tremida. As primeiras letras. Por que todo começo é difícil? Eu em meus começos. Nós. Quanto da criança que fomos ainda é hoje?
A vida era tão complicada que meus pais nunca esperaram algo de mim. Cresci sem a expectativa de seguir esta ou aquela carreira. Não havia carreira alguma, qualquer coisa que eu fizesse seria diferente de tudo que havia.
Cresci. Meu pai não está mais aqui e não caibo mais no bolso de Deus. Sento para escrever esta breve crônica e penso, escrevo para que mesmo? Talvez para atenuar a fragilidade da vida. Talvez para salvar-me da armadilha armada pela vida, morte. Talvez porque desejo o encontro com o outro. Há um lugar em que a palavra vira casa e a gente pode ser a gente. Cada um encontra um jeito de sobreviver, não é? É a recusa sem ser negação. Afinal, nascemos e vivemos com uma força de animal cego que atravessa os dias e se refaz a todo momento. Até o fim. Ontem observava uma pessoa que tilintava num fogo íntimo queimando quem estava ao redor. Às vezes somos pura combustão e nem nos damos conta de como machucamos quem amamos. Demora para entender que somos nós, armadilha. A força da palavra.
Escrevo. E escrevo para dar chão ao meu tempo. Enquanto há tempo.