
Reconhecida como pesquisadora e estudiosa da cultura, história e personagens da região, com mais de 30 livros lançados, Véra Stedile Zattera recebeu uma provocação inesperada há alguns anos. Durante uma conversa com o empresário Valter Gomes Pinto, que no futuro inclusive seria biografado por ela, recebeu uma pergunta fulminante:
– Escuta, quando é que tu vai falar do teu pai?
Ela não tinha uma resposta na época, e até hoje não tem uma explicação exata sobre o porquê dessa demora. De qualquer forma, a boa notícia é que esta lacuna não existe mais.
O lançamento do livro Francisco Stedile – modus vivendi, feito no último dia 17 de maio, supre a curiosidade sobre uma das mais emblemáticas figuras do desenvolvimento de Caxias do Sul, e vai muito além do personagem público.
Apesar de até então não haver um livro específico lançado sobre ele, a trajetória de Francisco já havia sido contada de outras formas, especialmente em materiais sobre a Agrale e as diversas outras empresas que criou. Seus feitos também já haviam sido relatados ao se contar a história da cidade, pois teve enorme envolvimento em ações comunitárias e entidades, como SER Caxias, CIC e Rotary, entre outras. Faltava, no entanto, uma obra sobre o lado pessoal e que fosse além do perfil empresarial do Xico Stedile, que é como Véra se refere ao pai, na obra.
— Eu sempre pensei que falar do meu pai não era bem aquilo que o público queria. Eles queriam o empresário, mas com a provocação do seu Valter, eu comecei a me empenhar mais, vamos dizer assim, e ele merecia ter um livro dele mesmo. Como pesquisadora e como filha também, ficou me incomodando aquela situação e resolvi fazer — revela Véra.

História mais profunda daquele menino de origem humilde
Assim, quem ler Francisco Stedile – modus vivendi, terá a possibilidade de conhecer, além da brilhante trajetória do empresário, a história mais profunda daquele menino de origem humilde, nascido em Pedras Brancas, no interior de São Marcos, em 17 de maio de 1922. Quarto mais velho entre 10 filhos do casal Valentin e Josephina, logo aos nove anos de idade recaiu sobre Xico o peso de conduzir a família, pois o pai morreu precocemente, aos 33 anos, e a tradição colocava essa responsabilidade sobre o menino mais velho da casa. A fim de se preparar melhor para cumprir essa missão, foi mandado para São Marcos, onde ficou na casa dos avós, para estudar. Fez três anos do curso primário e voltou para se juntar à mãe e aos irmãos no cultivo da terra, algo que já executava antes, com o pai.
A dureza desse início acabou moldando a vida de Xico para sempre, desenvolvendo determinação e gosto pelo trabalho, tanto que logo depois, aos 13 anos de idade, além de atuar na roça, arrumou emprego como bóccia, que era como se chamavam os meninos que levavam água para os trabalhadores que então abriam a estrada entre São Marcos e Caxias. Esse contato com a rodovia o fez perceber as oportunidades, e alguns anos depois ele comprou um caminhão, iniciando a jornada pelo setor do transporte, como caminhoneiro.
A perspicácia daquele jovem o fez captar as necessidades do país na época, onde havia tudo por fazer. Talvez desde o início ele já tivesse o sonho de construir veículos no Brasil (o que faria depois), mas ele entendeu que, antes de mais nada, era preciso atender melhor os frotistas, que como ele precisavam de peças e insumos para manter as máquinas trabalhando.
Assim, em 1946 abriu a primeira empresa, a Auto Mecânica S.A., iniciando o caminho que levaria à criação de ícones da economia local como Agrale, Fras-le e Lavrale. A história do Francisco Stedile empreendedor obviamente está registrada no livro, mas colocada de forma diferente, com tom mais pessoal, inclusive contando bastidores das épicas viagens que fez sozinho ao exterior em busca de parceiros e tecnologias.

O Xico do dia a dia
O grande mérito da obra, porém, é trazer também o homem do dia a dia, o Xico, o que é feito ao contar que, por mais desafiadoras que fossem as viagens de negócio à Europa, também haviam sido difíceis as idas a Flores da Cunha, no lombo de mula, para visitar a noiva Amábile. A viagem de 35 quilômetros levava de oito a dez horas pelo interior. “Acho que não fui mais do que uma vez por mês ou um pouco mais. Era longe, dava dor no braço”, relatou ele mesmo em depoimento registrado no livro. Oito meses depois do começo do namoro já estavam casados, selando uma parceria que durou uma vida e gerou cinco filhos.
Para recuperar essas histórias, além de se valer das memórias trazidas pela convivência, Véra revela que usou como fontes entrevistas com pessoas que conheceram o Stedile jovem, especialmente irmãos, cunhados e amigos dele. Embora a coleta de materiais tenha levado cerca de 15 anos, ela relata que o trabalho mais dedicado levou cerca de três anos.
Os hábitos relatados reforçam a impressão de simplicidade que Stedile sempre transpareceu, pois o gosto pela pescaria, jogo de bolão e carteado, presentes na juventude, foram mantidos até o fim da vida. A convivência familiar também é apontada pela autora como uma característica muito marcante da personalidade do pai:
— Além dos negócios, ele gostava de viajar com os filhos, e adorava criança. Era apaixonado por criança, tanto que nós fomos um número bastante grande na família, com muitos netos e bisnetos, que ele chegou a conhecer.
O amplo trabalho de pesquisa resultou em uma obra de 312 páginas, produzida pelo Grupo Francisco Stedile e fartamente ilustrada. O livro não está à venda, mas vai ser distribuído para pessoas que fizeram parte da trajetória da autora e da família. Com o sentimento de missão cumprida, Véra entende que as páginas conseguem mostrar, de forma clara e transparente, a amplitude do ser humano biografado:
— Foi uma pessoa absolutamente inquieta. Ele veio do nada, eu posso dizer isso com cátedra, e fez uma caminhada de descobertas. Na verdade, o que o que eu quero mostrar é os dois lados, o todo, que é justamente ali que mora, vamos dizer assim, a grandiosidade do ser humano.